28 Novembro 2023
“A violência é a mais mimética das paixões, e a atração que ela sempre exerceu é ainda mais amplificada hoje pelas mídias sociais”, diz Bernard Perret, um dos principais especialistas no pensamento de René Ginard, o falecido antropólogo social e filósofo que inventou a “teoria mimética”.
A reportagem é de Élodie Maurot, publicada em La Croix International, 24-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A violência põe todos em risco moral, mesmo aqueles que inicialmente são meros espectadores”, diz Perret, que leciona no Institut Catholique de Paris.
O mais recente de suas dezenas de livros intitula-se “Violence des dieux, violence de l’homme” [Violência dos deuses, violência do homem], que tenta decifrar a violência contemporânea à luz da obra de Girard, explicou Perret nesta entrevista exclusiva ao La Croix.
A guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio chamaram a nossa atenção para as formas mais brutais de violência. Para além das singularidades desses conflitos, é possível ler neles uma lógica da violência?
Cada guerra revela a dinâmica autônoma da violência, sua capacidade de subverter a vontade dos envolvidos e sua suposta racionalidade. O pensamento de René Girard permite-nos entender as forças motrizes permanentes por trás dela, o que não nos isenta de considerar as causas específicas de cada conflito, nem, é claro, de tomar uma posição. A antropologia girardiana pode nos ajudar a desmistificar a violência e a não sermos completamente enganados por discursos que buscam torná-la um meio moral e racional para alcançar determinados objetivos.
Em “A violência e o sagrado” [Ed. Paz e Terra, 2008], Girard escreve: “Muitas vezes diz-se que a violência é irracional. No entanto, não lhe faltam razões. Ela até pode encontrar razões muito boas quando deseja ser travada. No entanto, por melhores que essas razões podem ser, elas nunca devem ser levadas a sério”.
Isso pode parecer excessivo, mas a verdade é que sempre subestimamos a natureza recíproca e contagiosa da violência, a espiral da vingança e do ressentimento, o fascínio perturbador que ela produz. Não queremos que o desejo de destruir o outro vença todas as outras considerações.
Nesses conflitos, todos os protagonistas se consideram vítimas. Isso também é revelador?
A preocupação com as vítimas, o lugar central que elas ocupam nos nossos debates, é uma característica específica das sociedades moldadas pelo cristianismo. Para Girard, é o efeito subliminar da cruz de Cristo. A imagem do Senhor Deus apegou-se à da vítima torturada, e ninguém pode fingir o contrário, seja crente ou não.
No entanto, como Girard observou muitas vezes, a humanidade parou no meio do caminho. O impacto da mensagem do Evangelho é suficientemente forte para nos impedir de dizer “ai dos vencidos”, como os romanos, mas não o suficiente para nos fazer renunciar à violência. Daí o uso mau e perverso das emoções: mesmo quando as vítimas despertam uma compaixão sincera, elas servem muito rapidamente para justificar uma escalada da violência. Os próprios jihadistas costumavam partir para a Síria dizendo: “Os nossos irmãos são vítimas”.
Ouvimos muito sobre o risco de importar o conflito israelense-palestino. O que Girard tem a dizer sobre o contágio da violência?
A partir do momento em que nos interessamos pela violência e nos deixamos penetrar pelas suas imagens, nós mesmos corremos o risco de sermos apanhados pelo contágio emocional, de nos identificarmos com um lado ou com o outro, de escolhermos as nossas vítimas e de nos alegrarmos com o infortúnio dos outros.
A violência é a mais mimética das paixões, e a atração que ela sempre exerceu é ainda mais amplificada hoje pelas mídias sociais, verdadeiras máquinas de atiçar paixões coletivas. A violência põe todos em risco moral, mesmo aqueles que inicialmente são meros espectadores –alguém pode permanecer um mero espectador frente à violência?
Israel defende sua operação em nome da autodefesa, da qual decorre a violência legítima. O Ocidente segue o exemplo. Como podemos entender esse retorno à força?
Acreditávamos no progresso da civilização, e não sem boas razões: a extensão do Estado de direito, os tribunais internacionais e o desenvolvimento das trocas econômicas são coisas excelentes. Mas hoje vemos que a paz mundial é frágil e que a violência pode destruir tudo.
Alguns líderes políticos tendem a esquecer que defender a ordem internacional não significa declarar-se ao lado dos bons contra os maus. Devo ser claro aqui: a violência só é justificável na medida em que serve a uma ordem política e jurídica que possa ser reconhecida como justa e legítima por todos.
Isso não deve ser confundido com a ideia de uma “guerra justa”, no sentido de uma “guerra moral” motivada por uma visão particular do bem, uma vez que nada sugere que essa visão possa servir de base para a construção de um mundo em paz. Contudo, no caso do conflito israelense-palestino, os contornos dessa ordem justa e legítima não são evidentes.
A legitimidade de uma ordem coletiva não pode ser decretada. Ela é construída historicamente, por meio do surgimento de instituições capazes de estabelecer princípios e produzir padrões de autoridade. É por isso que é essencial, acima de tudo, consolidar os organismos multilaterais e as jurisdições internacionais existentes. Apesar de sua atual fragilidade, é neles que residem as soluções.
Alguns intelectuais católicos defendem Israel em nome de sua proximidade aos judeus, chegando até a teologizar a violência. Como podemos sair dessa confusão?
Reinvestir as raízes judaicas do cristianismo não significa teologizar o Estado de Israel! Teologizar uma realidade política equivale sempre a endossar a sacralização da violência. Essa confusão é surpreendente. A Bíblia nos lembra constantemente que a força deve estar a serviço da lei e da justiça.
Distinguir o guerreiro do terrorista certamente é necessário para tentar civilizar a guerra, mas essa distinção é mais frágil e relativa do que gostaríamos. Todas as guerras têm sua cota de atrocidades. Quando Israel se apresenta como “o exército mais moral do mundo”, cria-se muita confusão. É um retorno à retórica do bem contra o mal de George Bush. Tal postura não deixa espaço para o tratamento político dos problemas.
Há uma ontologização do campo do bem, que é uma forma tipicamente ocidental de tornar a violência sagrada. Com a ideia ilusória de que nós, por sermos “civilizados” ou “cristãos”, somos capazes de fazer um uso humano, moderado e racional da violência.
Deveríamos saber, no entanto, que superar a violência é uma tarefa muito mais exigente. Para começar, devemos recusar fazer dela uma fonte de sentido. É aqui que Girard entra em cena, ao expor a capacidade da violência de produzir narrativas mistificadoras. É uma forma perversa do sagrado que nem sempre é fácil de decifrar...
Qual foi a solução de Girard para a violência?
Uma de suas contribuições foi mostrar que o eixo central da moral evangélica é a “antirreciprocidade” – “dar a outra face” em vez do “olho por olho, dente por dente”, perdoar “setenta vezes sete” etc.
Não se trata de slogans utópicos que testemunham um idealismo selvagem, mas sim princípios realistas de conduta baseados em uma compreensão profunda dos mecanismos de violência. Não podemos acabar com a violência sem uma vontade resoluta de romper com as cadeias miméticas.
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A violência põe todos em risco moral. Entrevista com Bernard Perret - Instituto Humanitas Unisinos - IHU